
Esse post é muito especial e muito delicado também, porque trata de sentimentos fortes e cheios de conflitos.
Então vou mostrar para vcs um belo texto do Gustavo Gitti:
Suspensão: agora é a cozinha que recepciona o êxtase. Começa metendo por cima da mesa de vidro, mas logo ele a levanta. Ali tudo faz sentido, tudo repousa. É a posição preferida dela: suspensa, entregue, sem nenhum pé no chão, menina e mulher, segurando e se soltando. Ele apoia o pé esquerdo na cadeira e com a coxa levanta a perna direita dela (a esquerda é sustentada pelo seu braço direito). Ela hesita, não sabe se ele aguentará o peso. Levemente, ele a joga para cima. Ela cai, ele fundo dentro. Ela confia. Não há mais por que hesitar.
O filósofo David Loy sugere a idéia de que nós evitamos o vazio (”avoid the void”), de que nosso medo e ansiedade surgem da possibilidade de nosso eu não ser real, de nossas identidades não serem tão sólidas como imaginamos. Segundo ele, buscamos existir e nos tornarmos reais por meio do
dinheiro, da fama, do amor romântico e da tecnologia. Procuramos por alguma base para fixar os pés e ali nos sentimos protegidos. O pessoal do trabalho nos concede qualidades, nosso parceiro amoroso nos elogia, somos irresistíveis pelo MSN, compramos roupas e gadgets que nos deixam vivos diante da sociedade.
É impressionante como colocamos energia e vinculamos nossa felicidade a elementos impermanentes (uma pessoa, uma instituição, uma casa, uma cidade, nosso corpo): quando eles flutuam, oscilamos; quando desabam, morremos junto. Por termos medo de viver sem bases, nos agarramos a bases frágeis, como se elas fossem seguras e eternas.
Quando entramos em crise, somos como o Coiote (Wile E. Coyote) que, ao fugir do Papa-Léguas (RoadRunner), se dá conta que passou do limite do penhasco e ficou alguns segundos correndo sem chão. Temos a sensação de base até que olhamos para o chão e tomamos um susto: não há nada abaixo de nós! Assim que percebemos isso, começamos a cair e buscamos desesperadamente por outra base. Com a nova sensação de pés no chão (depois de uma promoção no trabalho ou uma bela noitada com a nova paixão), paramos de olhar para baixo. De fato, a sensação de segurança vem dessa ilusão, cegueira voluntária. A base dura, portanto, até o momento em que algo nos levanta as pálpebras, até que olhamos novamente para baixo e vemos que estamos há tempos andando sem chão.
Ora, nunca houve penhasco algum! Em nenhum momento de nossas vidas realmente estivemos em um chão seguro. A crise só acontece pois temos a sensação de perder algo que nunca tivemos. Desde nosso nascimento, estamos andando céu afora, sem porto seguro, sem referencial último, sem certezas absolutas, sem colo incondicional. Não precisamos nos desesperar quando a vida puxa nosso tapete e perdemos o chão: ele nunca existiu. (A mesma idéia se apresenta na instrução “Viva como se estivesse morto”: sem medo de perder a vida, pois não mais a tenho, posso finalmente viver).
Curiosamente, ao viver sem bases, ganhamos potência e intensidade. Enquanto buscávamos segurança, deixávamos um pé atrás diante dos mergulhos inevitáveis da vida – no outro, nas artes, no mundo e no amor. Agora, na espacialidade sem sustentação, nos jogamos inteiros, com força total. Já que nosso medo é virar nada, cessar de existir, não ser, corremos em sua direção e nos tornamos um imenso nada, para que tudo seja em nós. Tal processo levou Nietzsche a dizer:
“Vamos matar o espírito da gravidade!Eu aprendi a andar. Desde então, passei por mim a correr.Eu aprendi a voar. Desde então, não quero que me empurrem para mudar de lugar.Agora sou leve, agora vôo, agora vejo por baixo de mim mesmo,agora um Deus dança em mim!”
Se desejamos percorrer o amor, frui-lo por dentro e ser levados por ele, não podemos fixar os pés, não podemos tocar o chão. É na suspensão, a mesma da posição sexual na cozinha, que nos livramos do medo. No chão, toda pisada esconde medo e esperança. No chão, os olhos se fecham, os pés hesitam: o calcanhar verifica a solidez, as pontas dos dedos conferem se não há um buraco logo a frente. Só andamos se o chão diz OK. Só amamos se confirmamos cada sentimento no outro. No chão, mal pisamos. Andamos torto.
Suspensos, olhamos para as nuvens abaixo. Abrimos os olhos e pisamos fundo. Nosso andar é confiante pois não faz checagens – os pés não buscam solidez. Não há medo de cair já que o chão inexiste. A queda só dói quando há chão. Queda sem chão tem outro nome: vôo. Amar é sair andando e de repente se descobrir voando. É o amor, não só a Marisa, que nos chama cantando:
“Vem andar e voa… vem andar e voa”.
“Isto é amor: voar na direção de um céu secreto,fazer com que cem véus caiam a cada momento.Primeiro soltar-se da vidaE finalmente dar um passo sem pés.”–
Rumi (poeta e sábio sufi)